A Bhagavad-gītā Que Prabhupāda Não Escreveu: O Legado Editado de um Ācārya

 



Introdução: quando editar é alterar a tradição

Em 1972, a primeira edição da "Bhagavad-gītā Como Ela É" foi publicada pela editora Macmillan, trazendo ao Ocidente a tradução e os comentários de A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupāda. Não era apenas uma tradução técnica do texto sânscrito — era uma revelação viva, transmitida por um mestre autorrealizado dentro da sucessão discipular (paramparā) autêntica do Vaiṣṇavismo Gaudīya.

Prabhupāda não apenas traduziu os versos: ele os viveu. Suas palavras carregavam o peso da realização espiritual. Ao afirmar que aquela era sua “edição final”, Prabhupāda reforçava a autoridade e a completude de seu trabalho.

Porém, após seu desaparecimento físico em 1977, a obra foi significativamente alterada. Sob a liderança de Jayadvaita Swami, um dos editores da ISKCON, foi lançada uma nova edição da Gītā em 1983, com mais de mil mudanças — muitas delas feitas silenciosamente, sem aviso aos leitores ou aos discípulos do autor original.

Este artigo é um convite à reflexão crítica: Até que ponto essas mudanças foram justificadas? E mais importante: Quem tem o direito de alterar as palavras de um mestre espiritual após sua partida?

O que mudou na Gītā? Pequenas palavras, grandes implicações

Jayadvaita Swami e outros defensores da revisão alegam que a nova edição é mais precisa, baseando-se em manuscritos anteriores de Prabhupāda. No entanto, uma análise comparativa mostra que muitas alterações não são neutras — elas mudam o foco, o estilo, a filosofia e até a pedagogia do texto.

Exemplo 1: Bhagavad-gītā 2.13

1972 (original): “Assim como a alma corporificada passa continuamente, neste corpo, da infância para a juventude e para a velhice, também a alma passa para outro corpo na morte. A alma auto-realizada não fica confusa com tal mudança.”

Edição revisada (Jayadvaita Swami): “Assim como a alma encarnada passa seguidamente, neste corpo, da infância à juventude e à velhice, da mesma maneira, a alma passa para um outro corpo após a morte. Uma pessoa sóbria não se confunde com tal mudança.”

Aqui vemos três mudanças significativas:

  • “continuamente” vira “seguidamente”, enfraquecendo o conceito de continuidade espiritual;
  • “alma auto-realizada” vira “pessoa sóbria”, substituindo a ênfase espiritual por uma característica psicológica;
  • “alma corporificada” torna-se “alma encarnada”, o que pode confundir leitores influenciados por outras teologias sobre encarnação.

Exemplo 2: Bhagavad-gītā 4.34

1972: “A alma autorrealizada pode lhe transmitir conhecimento porque ela viu a verdade.”

Edição revisada: “As almas autorrealizadas podem lhe transmitir conhecimento porque viram a verdade.”

O singular é trocado pelo plural. Isso dilui o conceito de um guru raro e puro, promovido por Prabhupāda, em favor de uma pluralidade institucional. Em outras palavras: a ênfase na raridade do mestre espiritual genuíno se perde em uma generalização conveniente para um sistema colegiado.

Há mais de mil outras alterações, muitas com nuances similares: mudanças no foco do sujeito (de Kṛṣṇa para uma entidade impessoal), alterações de tempo verbal que tiram a urgência da prática espiritual, e ajustes no tom que tornam a mensagem menos direta e mais acadêmica.

Impactos práticos e filosóficos: quando a mudança não é neutra

A ISKCON atual defende a edição de seus livros como algo natural, necessário e técnico. Mas devotos que viveram sob a orientação direta de Prabhupāda sabem que ele foi claro e firme: “Não mudem nada.”

A edição de Jayadvaita Swami, por mais que se esforce por parecer uma correção editorial, revela um esforço sutil de adaptação institucional:

  • A autoridade de um guru puro é substituída por uma visão colegiada e institucionalizada;
  • A clareza de certas afirmações é trocada por ambiguidade sânscrita e linguagem técnica;
  • O estilo direto e pastoral de Prabhupāda é suavizado por um tom impessoal e acadêmico.

Essas alterações atendem a uma nova estrutura de liderança. Uma estrutura onde múltiplos gurus dividem autoridade, e onde a centralidade de Prabhupāda como śikṣā-guru eterno é gradualmente relativizada.




Uma questão de sucessão: Prabhupāda vive em seus livros?

Prabhupāda afirmou diversas vezes: “Eu viverei para sempre nos meus livros.” Ele também ensinou que o śabda (som revelado) é a verdadeira presença espiritual. Nesse sentido, seus livros são seu corpo espiritual manifesto.

Alterar os livros após sua partida é, portanto, mais do que uma edição: é uma interferência na presença viva do mestre. É um ato que exige extrema justificativa espiritual — algo que nunca foi devidamente apresentado à comunidade de devotos.

Reflexão final: de que lado da história espiritual queremos estar?

Em toda tradição espiritual há um ponto de virada. Um momento em que se decide entre manter a fidelidade ao mestre original, ou adaptá-lo às conveniências institucionais. Estamos vivendo esse momento agora, dentro da ISKCON.

A Gītā de 1972 não é perfeita aos olhos dos acadêmicos. Mas é perfeita como instrumento de instrução espiritual, pois foi autorizada, aprovada e usada por Prabhupāda para despertar milhares de almas.

Aceitar as mudanças pós-1977 sem questionamento é esquecer que o dharma se preserva não pela adaptação, mas pela fidelidade.

Que lado da história espiritual queremos representar? O dos preservadores? Ou o dos revisores?

Prabhupāda respondeu essa pergunta com simplicidade:

“Aceite como é. Não edite. Kṛṣṇa não precisa da sua ajuda.”

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