De Discípulos a Gurus Institucionais: O Caso da ISKCON Brasil e o Esquecimento do Sistema de Iniciação de Śrīla Prabhupāda
Introdução: O Paradoxo das Iniciações à Distância
Em meio ao oceano de contradições que marcam a história institucional da ISKCON após a partida física de Śrīla Prabhupāda, um dos temas mais delicados e controversos é a forma como as iniciações foram — e continuam sendo — conduzidas.
Embora haja fartas evidências documentadas de que Prabhupāda estabeleceu um sistema de iniciação representativa (conhecido como rītvik) para continuar aceitando discípulos após sua partida, muitos de seus próprios discípulos, especialmente no Brasil, passaram a negar essa possibilidade.
O paradoxo se intensifica quando observamos que esses mesmos discípulos foram iniciados por carta, sem jamais terem visto Prabhupāda pessoalmente. Ainda assim, anos depois, assumiram a posição de “gurus” nomeados pela GBC, defendendo que após 1977 ninguém mais poderia ser iniciado diretamente por Prabhupāda.
O Sistema Rītvik: A Carta de 9 de Julho e a Continuidade do Discipulado
Em 9 de julho de 1977, quatro meses antes de sua partida, Śrīla Prabhupāda ditou uma carta endereçada a “Todos os Templos e Centros”, autorizando formalmente a nomeação de representantes rītvik — ou seja, sacerdotes iniciadores que atuariam em seu nome para continuar aceitando novos discípulos.
A carta, assinada por seu secretário pessoal (Tamāla Kṛṣṇa Goswami) e distribuída mundialmente, afirmava:
“Aqueles que forem recomendados para primeira ou segunda iniciação deverão ser iniciados por estes representantes. O nome do discípulo será enviado por estes representantes e, após a aprovação, o segundo nome espiritual será dado por Śrīla Prabhupāda.”
A clareza é impressionante: os rītvik agiriam em nome de Prabhupāda, e os iniciados seriam discípulos de Prabhupāda, não dos representantes.
Mais do que uma delegação temporária, muitos estudiosos e devotos argumentam que esse sistema era a forma permanente prevista por Prabhupāda para o futuro da ISKCON.
O Caso Brasileiro: Iniciados à Distância, Mas Contra o Rītvik
Nos anos 1970, a presença física de Śrīla Prabhupāda no Brasil foi praticamente inexistente. Nenhum dos devotos brasileiros da época teve a oportunidade de vê-lo pessoalmente, tampouco de interagir diretamente com ele. E ainda assim, dezenas de discípulos foram oficialmente iniciados por Prabhupāda — exclusivamente por meio de cartas enviadas por seus representantes rītvik.
Esses devotos brasileiros, alguns hoje considerados “autoridades espirituais” dentro da ISKCON, receberam seus nomes espirituais e a aceitação formal como discípulos de Prabhupāda através de uma estrutura totalmente não presencial.
A iniciação era transcendental e funcional, baseada na autoridade do ācārya, não em interações físicas.
Com o passar dos anos, no entanto, alguns desses mesmos discípulos passaram a ocupar posições de poder institucional. Sob a égide do GBC, foram promovidos ao posto de “guru dikṣā”, iniciando seus próprios discípulos e rompendo radicalmente com o sistema que os havia conectado a Prabhupāda.
Pior: muitos passaram a negar abertamente que Śrīla Prabhupāda ainda pudesse continuar iniciando discípulos hoje, após sua partida física, desqualificando o sistema rītvik que foi exatamente o meio pelo qual eles mesmos foram aceitos como discípulos legítimos.
Contradições que Não se Sustentam
Essa contradição levanta perguntas fundamentais:
- Se a presença física não foi necessária no passado, por que agora se exige proximidade institucional com novos “gurus”?
- Se a iniciação de Prabhupāda foi válida à distância, por que se nega essa possibilidade no presente?
- Que autoridade anulou o sistema rītvik, e com base em que instruções?
A resposta, até hoje, não aparece em nenhum śāstra, carta ou gravação de Prabhupāda — mas sim em resoluções administrativas do GBC, o corpo diretivo que se autoconcedeu poder para redefinir a estrutura iniciática da ISKCON.
Da Representação ao Protagonismo: Quando os Rītviks Viraram Gurus e Redefiniram a História
Logo após a partida de Śrīla Prabhupāda, o que se viu não foi a continuidade do sistema rītvik descrito na carta de 9 de julho de 1977, mas sim uma mudança abrupta. Em 1978, um grupo de 11 discípulos de Prabhupāda — os chamados “zonal ācāryas” — foi promovido à posição de gurus dikṣā com autoridade exclusiva para iniciar discípulos como “sucessores” de Prabhupāda.
O que começou como uma representação funcional virou protagonismo espiritual. Os representantes passaram a se apresentar não como servos do sistema de Prabhupāda, mas como novos mestres autorrealizados, dignos de adoração igual ou superior à do próprio Fundador-Ācārya.
Este modelo institucional, sancionado pela GBC, criou uma linha de sucessão paralela, jamais autorizada por Śrīla Prabhupāda. Com o tempo, mais discípulos desses “11 iniciais” também se tornaram gurus — por nomeação administrativa, e não por realização espiritual reconhecida universalmente.
No caso da ISKCON Brasil, essa estrutura foi absorvida sem questionamentos profundos. Muitos discípulos de Prabhupāda passaram a atuar como gurus regionais, criando redes de discípulos que os tratam como mestres absolutos.
Livros foram reeditados, instruções ignoradas ou reinterpretadas, e o rītvik — palavra que ainda hoje causa desconforto em muitos círculos institucionais — virou sinônimo de heresia.
O paradoxo persiste:
- Aqueles que foram iniciados à distância, por carta, hoje negam essa possibilidade para os outros.
- Aqueles que nunca viram Prabhupāda, dizem que ninguém pode ser iniciado por ele — ainda que eles o tenham sido.
- Aqueles que eram rītviks passaram a se colocar como substitutos de Prabhupāda, criando um modelo sucessório que ele nunca autorizou.
Ao invés de manter a pureza da conexão com o ācārya fundador, institucionalizou-se uma classe clerical, marcada muitas vezes por ambição, política e culto à personalidade.
Reflexões Finais: A Traição Silenciosa e o Futuro da Sucessão Espiritual
A contradição que paira sobre a história recente da ISKCON não é apenas institucional — ela é existencial. O legado de Śrīla Prabhupāda foi sistematicamente reinterpretado para acomodar estruturas de poder que ele próprio havia alertado que poderiam corromper a missão. Ao contrário da simplicidade e pureza do sistema que ele estabeleceu — onde ele mesmo continuaria sendo o mestre espiritual de todos os membros sinceros — criaram-se hierarquias paralelas que usurparam sua posição.
No Brasil, esse fenômeno assume contornos particularmente gritantes. Os devotos que, por meio do sistema rītvik, se tornaram discípulos diretos de Prabhupāda agora defendem que esse mesmo sistema é inválido, e que somente por meio deles ou de outros gurus nomeados é possível alcançar iniciação legítima.
Isso não é apenas incoerente — é uma traição silenciosa ao princípio de śikṣā e dikṣā tal como estabelecido por Prabhupāda.
As consequências desse desvio não são meramente formais. Muitos devotos sinceros se veem perdidos, confusos, ou mesmo desamparados espiritualmente por não desejarem se submeter a um sistema que claramente distorce os fundamentos do discipulado.
Outros, por medo de retaliações, se calam diante das evidências. E a maioria, infelizmente, sequer conhece os documentos, as cartas, e os testemunhos que sustentam a legitimidade contínua de Śrīla Prabhupāda como mestre iniciador.
A questão que resta é simples: Se Prabhupāda pôde iniciar por carta ontem, por que não pode fazê-lo hoje?
E quem, exatamente, tem autoridade para impedi-lo de continuar essa função?
Talvez seja hora de abandonar a adoração institucionalizada e voltar à essência do discipulado: uma relação eterna com o ācārya fidedigno, baseada em śāstra, śikṣā e śraddhā — e não em cargos, comitês ou políticas de poder.
Om Tat Sat
Cante Hare Kṛsṇā e seja sempre feliz 🙏
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"To do things hastily and incorrectly is not good. Anything valuable takes a little time to come into existence. Therefore there is no harm in waiting for the best thing. But everything is well that ends well: That should be the principle."
Prabhupada Letters :: 1969.
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"Hacer las cosas de afán y mal no es bueno. Algo valioso toma un poco de tiempo para llegar a existir. Por lo tanto no hay daño en esperar lo mejor. Pero si algo va bien termina bien. Ese debe ser el principio".
Cartas de Prabhupada :: 1969.